A oficina onde a cerâmica acontece

Na olaria de Barcelos, o Sr. João mantém viva uma tradição familiar que atravessa gerações, moldando o barro com a mesma dedicação de quem lhe reconhece alma e história. Entre histórias do passado e desafios do presente, passando pelo desinteresse dos jovens nesta arte ancestral, o Sr. João partilha connosco os segredos da produção artesanal dos vasos Artevasi e até a origem curiosa da expressão “atirar o barro à parede”. Uma conversa que revela não só a exigência desta arte ancestral, mas também a paixão que ainda hoje lhe dá forma.

Histórias
A oficina onde a cerâmica acontece

Pergunta - O Sr. João lida com a olaria há bastante tempo. Como surgiu esta paixão e este interesse?

Sr. João – A paixão pela olaria já vem de família. O meu bisavô fundou a olaria, o meu avô também trabalhou cá e, entretanto, passou de geração em geração, até chegar a mim. Na altura em que comecei a trabalhar por conta própria em 1997, eu e um familiar meu pegámos na oficina que permanece até hoje. Só que em 1998, infelizmente, teve um acidente e já não se encontra entre nós. Fiquei eu sozinho à frente da oficina, até hoje.”

A olaria é uma arte peculiar e muito famosa em Portugal. Na sua opinião, o que a distingue das outras artes? O que é que a torna especial?
É preciso gostar da olaria e ter muita, muita paciência.

O que envolve o processo produtivo de um vaso de cerâmica?
O processo produtivo de um vaso de cerâmica não é pera doce. Passa por preparar o barro, colocá-lo de molho na água para ficar macio, colocar na máquina para misturar e traçar o barro. Depois, o barro passa para outra máquina que tem cilindros de ferro, que servem para esmagar o barro e partir as areias. Nessa máquina, tiramos todo o ar ao barro para ficar elástico e, assim, ser possível moldá-lo.

E a arte de moldar o barro também tem muito que se lhe diga. Sente que atualmente é difícil encontrar oleiros ou motivar os jovens a interessarem-se por esta arte?
Sinceramente, não há quem queira.

Porquê?
É um trabalho um bocadinho sujo. Trabalhamos sempre todos sujos (risos). Estamos sempre com as mãos na água...o que no inverno era mais complicado. Agora não, mas antigamente, os pavilhões eram abertos e era um frio desgraçado nas mãos. Era mãos frias todo o dia. Hoje não, os telhados são diferentes e já se trabalha melhor. Ainda assim, não é fácil cativar. Os jovens têm o objetivo de ir para a escola e formar-se noutras áreas, o que é normal.

Mas sente que é um negócio que está a cair no tempo ou ainda continua forte, especialmente nesta região de Barcelos?
A nível de oleiros sim, está a cair. Daqui a 20 anos, vai haver muito poucos oleiros. Os oleiros que existem são mais ou menos da minha geração. Cinquentas, por aí. Pessoal novo, com 20 anos, não conheço ninguém.

Contudo, a nível de mercado, há pelo menos a perceção de que a aposta na cerâmica está a aumentar. As pessoas querem mais cerâmica nas suas casas. Ou seja, há aqui uma diferenciação: uma coisa é sujar as mãos com o produto, outra é gostar do produto final. Tem essa perceção também?
Sim.

E tem tido mais procura por parte do mercado nacional?
A nível do mercado nacional, não. Antigamente, produzia-se muito para cá, era um tipo de vasos e jarras diferentes. Mas a nível do mercado externo, sim, há muita procura.

Terá a ver com a questão do poder de compra?
Talvez sim, mas antes os vasos eram mais caros. Hoje, existem vasos que em 1998 eram mais caros. Mas atualmente, a procura do mercado nacional está, de facto, a baixar.

É uma leitura interessante...
Antigamente, produzia muitas jarras. Fazia a 1700 escudos e vendia tantas quantas tivesse para vender. Agora, já estão mais caras um pouco, mas chegaram a fazer-se a 5 euros.

Na coleção de cerâmica artesanal da Artevasi, há algum vaso que se destaque pelo detalhe ou que seja mais difícil de fazer do que outros?
Na área dos vasos, os vasos são todos muito parecidos. As linhas são direitas e não há assim muito trabalho no vaso, por assim dizer.

Por exemplo, o Aura é um vaso que se distingue pelos traços que marcam o seu padrão. Como é que é feito esse detalhe?
Chamamos-lhe os roletos. No fundo, é quase como um carreto numa caixa de velocidades. Colocamos as ranhuras na peça e, ao deslizar pelo vaso, faz esse efeito de ‘carrinho’.

Depois de moldado, quanto tempo demora a solidificar um vaso, em média?
Depende, no verão é mais rápido, por exemplo. Mas depois de moldado, em média, o processo para secar um vaso demora uns dois dias, ainda que esteja mais a pensar no inverno. No verão, acaba por demorar um pouco menos, mas acaba por ir sempre à estufa. A menos que estejamos a falar daqueles dias de calor tórrido, em que aproveitamos para secar o vaso diretamente ao sol.

Neste momento, encontramo-nos no escritório que, outrora, já foi literalmente um forno centenário. Na altura em que estava em funcionamento, havia muitas diferenças no processo produtivo dos vasos? Ou as técnicas mantiveram-se inalteráveis ao longo do tempo?
As técnicas que usamos são praticamente as mesmas, com algumas diferenças. Antigamente, por exemplo, usavam-se animais para amassar o barro. No tempo dos meus avós, era assim. Colocavam o barro no chão e os animais pisavam-no, para partir tudo e torná-lo macio. E depois pegavam no barro para o vergar. Ou seja, pegavam num pedaço de barro, cortavam com as mãos, batiam um pedaço no outro, cortavam mais um pouco, batiam um pedaço no outro, e sempre assim...Depois, passavam as mãos no barro para ver se encontravam pedras, e cada vez que encontrassem, tinham de as tirar, o que dava uma trabalhadeira medonha (risos).

Era como se fazia antigamente (risos)...
Exatamente. E no inverno, quando o barro estava mole, atiravam-no literalmente à parede. A parede absorvia a humidade do barro e assim ele ficava mais duro. Daí a expressão “atirar o barro à parede”. O barro ficava colado à parede e quando ficava duro, caía ao chão.

Quanto ao futuro, vê a sua descendência continuar com a oficina?
A nível familiar, vai ser muito difícil continuar isto, porque as minhas filhas, por exemplo, já estão noutras áreas. E tenho três sobrinhos rapazes que também não têm grande interesse. Nós vemos os oleiros a trabalhar na roda e achamos que aquilo é fácil, mas não é. Há dois anos, convidei um dos meus sobrinhos a vir para cá ajudar nas férias, e ele só veio para cá uma tarde. Nem endireitar o barro conseguia (risos). Naturalmente, desmotivou. É preciso gostar mesmo. Eu tenho um funcionário que tirou o curso de mecânico antes de vir para cá. Começou a trabalhar com a roda aos 20 anos, mas ganhava muito pouco porque não conseguia produzir. Começar a trabalhar e não ganhar dinheiro é muito complicado. Porque é mesmo difícil, há pessoas que nem ao final de um mês conseguem fazer uma peça. Tem mesmo de haver uma certa aptidão e, acima de tudo, gostar muito.

O barro que é, por assim dizer, desperdiçado na produção de um vaso, é depois reutilizado numa nova produção, correto?
Sim, a menos que esteja cozido. E mesmo assim, é possível moer o vaso e voltar a colocar água para ser novamente moldado.

De onde provém, maioritariamente, o barro que é utilizado na oficina?
O nosso barro provém maioritariamente da zona de Viana do Castelo, se bem que também trabalhamos com barro vindo da zona de Aveiro, que se distingue por ser um barro mais pastoso e assemelhar-se mais à plasticina. Têm características muito diferentes.